Assim nos encontrávamos os três na manhã seguinte à cabeceira da cama do clone. Escusado será referir a nossa ansiedade, causada aliás por motivos diferentes. O Sr. Kornflock, por exemplo, pálido e teso como nunca, esperava o ressuscitar do seu Führer, na companhia do qual ele tencionava dominar o mundo. Para mim e a Dra. Luninski, aquele momento significava o culminar de uma experiência científica única.
Administrei-lhe a injecção que o faria despertar do coma. Demoraria apenas dez minutos. Mas todos nós conhecemos situações em que cada minuto se transforma numa eternidade.
Exactamente dez minutos e um segundo depois, os olhos do clone abriram-se. Esperámos suspensos mais uns momentos, mas a criatura não fazia mais nada a não ser fixar o tecto sobre si. O Sr. Kornflock lançou-me um olhar interrogativo e a única solução que se me apresentou foi aproximar-me do clone e perguntar-lhe baixinho:
“Bom dia... Sr. Hitler. Está a ouvir-me?”
Os olhos escuros moveram-se lentamente, até pousarem em mim: um olhar vazio, que não me dizia nada. Aclarei baixo a garganta e acrescentei o que tinha combinado com os nazis:
“Chamo-me Solani e sou o seu médico. Ouve-me? Consegue falar?”
Não se operou qualquer alteração naquele olhar vazio. E a boca por baixo do bigode ridículo manteve-se fechada.
O Sr. Kornflock empurrou-me para o lado e dirigiu-se ele próprio com voz tremente ao clone:
“É para mim uma grande alegria constatar que recuperou a consciência, meu Führer.”
À palavra Führer, as pestanas da criatura tremelicaram, o que também podia ter sido obra do acaso, pois não se seguiu qualquer outra reacção. O Sr. Kornflock acrescentou (dizendo também algo que havíamos combinado previamente):
“O senhor esteve muito doente, quase o perdemos. Mas o Dr. Solani e a sua colega Dra. Luninski conseguiram curá-lo.”
Esperámos longos minutos pelas primeiras palavras do clone... em vão.
O Sr. Kornflock puxou-me irritado para um canto do quarto e sibilou-me:
“Mas que significa isto?” O homem parecia à beira do colapso. “Porque é que o Führer não diz nada? Não nos consegue ouvir?”
“Sinto muito, mas não encontro explicação para tal.”
“E que sugere, então?”
“Continuemos à espera. Ele está vivo. Há-de mexer-se ou dizer alguma coisa.”
Não naquele dia! Observámo-lo o tempo todo, mas a criatura quase se limitou a fixar o tecto. Só deslocava o seu olhar vazio quando alguém se movia a seu lado, mais nada.
Ao fim da tarde, o comandante, que se tinha ausentado por duas horas, surgiu, perguntando por novidades. E como não havia nada para lhe dizer, o homem retorquiu inchado:
“Tudo isto só prova que eu tinha razão!”
Contraiu-se-me o estômago. Estava convencido que o Sr. Kornflock confirmava a sua suposição de que eu era um incompetente, ou seja, dispensável. Já me via a caminho da câmara de gás. O comandante limitava-se a fixar-me através dos óculos redondos, parecia gozar o meu pânico.
O silêncio dele tornou-se-me insuportável. Reuni toda a minha coragem e repliquei, o mais seguro possível:
“Podia fazer o favor de se explicar melhor?”
“O Führer precisa de um ambiente familiar à sua volta.” (Escondi o meu alívio o melhor possível). “É levá-lo à Sala da Presidência, para que possa ser saudado à maneira nazi! Assim se sentirá ele em casa.”
Como não me ocorria mais nada, concordei, mas sugeri ainda:
“Hoje já não. Apesar de ele não ter dito nada, nem sequer se ter mexido, esteve o dia todo acordado e devia dormir.”
“Acha que conseguirá adormecer?”
“É difícil de dizer... O melhor é dar-lhe um calmante.”
“De acordo. E amanhã será guiado bem cedo à nossa presença!”
Folhetim biebdomadário, todos os domingos e quartas-feiras! Estamos na América do ano 2112. Um cientista especializado em clonar animais extintos é raptado por uma comunidade de nazis vindos dos quatro cantos do globo, cujo objectivo é dominar o mundo. Metido num bunker, ele deverá clonar o Hitler a partir de um carvãozinho surripiado do local em que o corpo do dito cujo foi cremado.
Janela Indiscreta
Blogue recomendado por Pedro Rolo Duarte no seu programa Janela Indiscreta, da Antena 1, a 28-07-2010.
6 comentários:
Dizem que os reis eram tímidos na sua intimidade. Só se soltavam quando estavam reunidos da sua corte. Quem sabe? Gostei do acordar do monstro.
Podem até terem clonado o homem, mas parece-me que não consigam clonar a mente.
Mas o clono-nascido já trazia o bigode aparado e os galões?! Começo a desconfiar que isto é uma história inventada. Á cautela, não e arranjam um ficha de inscrição na gestapo.
Um abraço na fila de leitura
Espero que a experiência não dê certo, senão teremos por aí clones de indesejáveis de todas as espécies.
Abraço do Zé
A história é verídica, caro Pata Negra. Só que ainda não aconteceu, tem que se esperar até ao século XXII, onde coisas dessas são possíveis, sim ;)
Na volta sentia era a falta da Eva...
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