Janela Indiscreta

Blogue recomendado por Pedro Rolo Duarte no seu programa Janela Indiscreta, da Antena 1, a 28-07-2010.

29 de setembro de 2010

23º Episódio

Assim nos encontrávamos os três na manhã seguinte à cabeceira da cama do clone. Escusado será referir a nossa ansiedade, causada aliás por motivos diferentes. O Sr. Kornflock, por exemplo, pálido e teso como nunca, esperava o ressuscitar do seu Führer, na companhia do qual ele tencionava dominar o mundo. Para mim e a Dra. Luninski, aquele momento significava o culminar de uma experiência científica única.
Administrei-lhe a injecção que o faria despertar do coma. Demoraria apenas dez minutos. Mas todos nós conhecemos situações em que cada minuto se transforma numa eternidade.
Exactamente dez minutos e um segundo depois, os olhos do clone abriram-se. Esperámos suspensos mais uns momentos, mas a criatura não fazia mais nada a não ser fixar o tecto sobre si. O Sr. Kornflock lançou-me um olhar interrogativo e a única solução que se me apresentou foi aproximar-me do clone e perguntar-lhe baixinho:
“Bom dia... Sr. Hitler. Está a ouvir-me?”
Os olhos escuros moveram-se lentamente, até pousarem em mim: um olhar vazio, que não me dizia nada. Aclarei baixo a garganta e acrescentei o que tinha combinado com os nazis:
“Chamo-me Solani e sou o seu médico. Ouve-me? Consegue falar?”
Não se operou qualquer alteração naquele olhar vazio. E a boca por baixo do bigode ridículo manteve-se fechada.
O Sr. Kornflock empurrou-me para o lado e dirigiu-se ele próprio com voz tremente ao clone:
“É para mim uma grande alegria constatar que recuperou a consciência, meu Führer.”
À palavra Führer, as pestanas da criatura tremelicaram, o que também podia ter sido obra do acaso, pois não se seguiu qualquer outra reacção. O Sr. Kornflock acrescentou (dizendo também algo que havíamos combinado previamente):
“O senhor esteve muito doente, quase o perdemos. Mas o Dr. Solani e a sua colega Dra. Luninski conseguiram curá-lo.”
Esperámos longos minutos pelas primeiras palavras do clone... em vão.
O Sr. Kornflock puxou-me irritado para um canto do quarto e sibilou-me:
“Mas que significa isto?” O homem parecia à beira do colapso. “Porque é que o Führer não diz nada? Não nos consegue ouvir?”
“Sinto muito, mas não encontro explicação para tal.”
“E que sugere, então?”
“Continuemos à espera. Ele está vivo. Há-de mexer-se ou dizer alguma coisa.”
Não naquele dia! Observámo-lo o tempo todo, mas a criatura quase se limitou a fixar o tecto. Só deslocava o seu olhar vazio quando alguém se movia a seu lado, mais nada.
Ao fim da tarde, o comandante, que se tinha ausentado por duas horas, surgiu, perguntando por novidades. E como não havia nada para lhe dizer, o homem retorquiu inchado:
“Tudo isto só prova que eu tinha razão!”
Contraiu-se-me o estômago. Estava convencido que o Sr. Kornflock confirmava a sua suposição de que eu era um incompetente, ou seja, dispensável. Já me via a caminho da câmara de gás. O comandante limitava-se a fixar-me através dos óculos redondos, parecia gozar o meu pânico.
O silêncio dele tornou-se-me insuportável. Reuni toda a minha coragem e repliquei, o mais seguro possível:
“Podia fazer o favor de se explicar melhor?”
“O Führer precisa de um ambiente familiar à sua volta.” (Escondi o meu alívio o melhor possível). “É levá-lo à Sala da Presidência, para que possa ser saudado à maneira nazi! Assim se sentirá ele em casa.”
Como não me ocorria mais nada, concordei, mas sugeri ainda:
“Hoje já não. Apesar de ele não ter dito nada, nem sequer se ter mexido, esteve o dia todo acordado e devia dormir.”
“Acha que conseguirá adormecer?”
“É difícil de dizer... O melhor é dar-lhe um calmante.”
“De acordo. E amanhã será guiado bem cedo à nossa presença!”

26 de setembro de 2010

22º Episódio

A criatura ia ganhando forma, na sua incubadora, enquanto as funções vitais eram asseguradas pelo computador. Em meados de Abril, começou a ganhar os traços da figura que eu vira nos filmes. As fases críticas sucediam-se em catadupa, pois nem todos os órgãos estavam ainda completos. Por isso, a mantínhamos num coma controlado. Acordando cedo demais, o pobre sofreria martírios inimagináveis, antes de bater a bota... pela segunda vez!
À medida que o entusiasmo inicial assentava, a nossa consciência enchia-nos de contradições: por um lado, era a criação de um ser humano que tanto mal trouxera ao mundo; por outro, orgulhávamo-nos do nosso trabalho. Um trabalho que se revelava tão harmonioso, que eu já decidira: caso saíssemos dali vivos, a Dra. Luninski teria emprego assegurado no meu laboratório de Los Angeles. As fantasias eróticas, que de vez em quando me atacavam, desapareceriam, assim que eu estivesse novamente com a Amanda e a Dra. Luninski tivesse encontrado um outro namorado que a fizesse esquecer o canalha do Karl.
Apesar da evolução do clone permanecer crítica, nós os dois pouco mais tínhamos que fazer do que observá-lo, a fim de actuarmos com a maior urgência em caso de necessidade. Por isso, conversávamos muito, sobretudo sobre a Primavera a que não assistíamos. Fiquei a saber que a Dra. Luninski gostava muito de nadar, tal e qual como a minha filha. Quando lhe disse que havia de a convidar para a minha casa do lago, os olhos iluminaram-se-lhe. Mas logo a seguir pôs uma expressão contrariada, dizendo que só iria estorvar no idílio familiar.
“É claro que convidarei também o seu namorado”, disse-lhe eu.
Ela abriu muito os lindos olhos:
“O meu namorado?!”
“Uma mulher bonita como você depressa encontrará...”
“Mudemos de assunto, Professor!”
Coitada, ainda não tinha esquecido o canalha.

Em fins de Abril, provocámos grande euforia no bunker ao informar que o projecto estava praticamente concluído. Já tínhamos tirado o clone da incubadora e deitado numa cama, apesar de o mantermos em coma e o computador ainda lhe amparar as funções vitais. Eu injectei-lhe um chip microscópico na veia, como faz o médico: o chip forneceria, durante dois dias, informações sobre todos os órgãos, antes de se degradar biologicamente.
Resultado do exame: tudo em ordem, podíamos desligá-lo da máquina e acordá-lo. A Dra. Luninski e eu reunimo-nos na chamada Sala da Presidência com o Sr. Kornflock e os restantes seis membros que dela faziam parte. O acordar da criatura era um passo deveras arriscado e não podíamos assegurar que sobrevivesse ao choque. Por isso, eu era de opinião que o clone devia ser acordado deitado na sua cama, sem ter muita gente à volta. A minha colega e eu teríamos obviamente que estar presentes, mas, além de nós, apenas o comandante seria aconselhável.
A minha sugestão não agradou ao Sr. Kornflock. Ele achava que o Führer, vestido com o seu uniforme, deveria acordar ali mesmo, na Sala da Presidência, na presença de todos os membros. Assim depararia ele com uma imagem que lhe era familiar: um grupo de nazis, sentados à volta de uma mesa de trabalho, ansioso por ouvir e acatar as suas ordens. Realcei, com cuidado, o facto de que era impossível prever em que estado psicológico esse ser humano acordaria, eu nem sequer podia assegurar que ele se lembrasse da sua vida anterior. O deparar com tanta gente desconhecida à sua volta, poderia ser-lhe fatal. Não seria melhor prepará-lo, com toda a calma, para aquilo que o esperava?
Embora contrariado, o Sr. Kornflock acabou por concordar. E, como o estado de saúde do clone aparentava ser bom, decidimos dar esse passo arriscado no dia seguinte.

22 de setembro de 2010

21º Episódio

Ela tornou a abanar a cabeça. Depois, fixou a sua atenção na holografia que pairava no espaço do laboratório e disse:
“Nem sequer podemos assegurar que a criatura terá um cérebro normal.”
“De facto. A única coisa certa é que terá exactamente o aspecto do Hitler, à altura da morte deste.”
Observámos a imagem durante mais uns momentos, até eu desligar o computador. Era tarde e estávamos com sono. Mas nenhum de nós se foi deitar, ali ficámos vários minutos, sentados lado a lado, em silêncio.
“O senhor”, começou ela de repente, “exala sempre esse aroma a bergamota...”
Assim que recuperei da minha estupefacção, retorqui:
“É do meu óleo de duche. Peço desculpa, se a incomoda...”
“Oh não! Eu adoro o perfume da bergamota.”
“É mesmo?”
Olhámo-nos e eu senti dificuldade em me controlar. O que, aliás, nada tinha a ver com os lindos olhos castanhos da Dra. Luninski, com a sua boca sensual e os cabelos sedosos. Não senhor! Também nada tinha a ver com o facto de que ela, usando aquela roupa prática, ficava muito mais atraente do que com os trapos da discoteca. Os jeans assentavam-lhe como uma luva, realçando as pernas elegantes e o traseiro bem feito. Por baixo das t-shirts adivinhavam-se-lhe os seios apetecíveis e, em certos movimentos, descobria-se-lhe a barriga bronzeada, um umbigo irresistível...
Não, não tinha a ver com nada disso! Ela nem sequer era o meu tipo, eu sempre preferi as louras. Além disso, alimentava a esperança de que a Amanda ainda voltasse para mim. Era simplesmente a nossa situação de prisioneiros que me punha doido: tanto eu, como ela, ansiávamos por um pouco de divertimento...
Desviei o meu olhar do dela e passei a mão pelos meus cabelos em desordem. Talvez devêssemos aproveitar aquela oportunidade. O que tínhamos a perder? Mantinha-se o perigo de não sairmos vivos daquele bunker. Os fanáticos haveriam de tomar providências para que de nós não sobrasse nem um... Irra! Porque é que vou sempre parar ao mesmo?
A Dra. Luninski levantou-se, com as palavras:
“Bem, vou-me deitar.”
E desapareceu.
Aquilo desiludiu-me. Mas só num primeiro momento. Era melhor assim. Ela certamente ainda pensava no seu querido Karl, o canalha! E, se lhe apetecesse ter sexo comigo, era só a fim de encontrar algum consolo no meio da loucura em que nos tinham metido. Tal e qual como eu. O que nunca daria certo. Acabaríamos com a descontracção e a espontaneidade que caracterizavam a nossa relação de trabalho. Éramos uma equipa e pêras. Mas, assim que desaparecesse essa harmonia, acabaríamos na câmara de gás, depois no crematório, e de nós não sobraria nem um...
Mas que diabo! Agora chega!

19 de setembro de 2010

20º Episódio

Tudo corria bem, para ser mais exacto, melhor do que eu esperara, graças à colaboração da Dra. Luninski. Mas falarei sobre isso mais adiante. Também não vou perder tempo a descrever o projecto científico em detalhe, com montes de palavras técnicas, que só especialistas entendem. Bastará dizer que conseguimos extrair a informação genética do carvãozinho, criando células que na incubadora logo se começaram a multiplicar. Fiquei entusiasmado, afinal podia dar azo à minha criatividade, sem limites, clonando um ser humano que morrera há quase 200 anos, ou seja, vivia a realização de um sonho de qualquer cientista que se preze. Num caso desses, não há lugar para pesos de consciência.
Falarei agora da Dra. Luninski. Ela tivera razão: era o melhor que me podia ter acontecido! Até era mal-empregada como assistente, devia ser cientista por conta própria, desenvolvendo as suas ideias e criando os seus projectos. A ideia base para este procedimento, que me surgiu ainda antes de acabar o curso e que só era conhecida no meu laboratório, também ela a tinha tido e quase disso havia informado o Professor Saturnino. Apenas os problemas do seu foro privado a impediram de o fazer, principalmente a partir do momento em que já desconfiava que não ficaria muito tempo a trabalhar para o meu prestigiado colega.
Passaram-se quatro semanas. No início de Março, estando eu a examinar a holografia da multiplicação das células... Bem, interrompo este relato e ponho a minha modéstia de parte, afirmando que me sentia um verdadeiro génio! Era simplesmente fascinante observar como a minha invenção possibilitava de facto o surgimento de um ser humano adulto. Apesar de a imagem que se desenrolava à minha frente se assomar horrível para um leigo, aos meus olhos ela era linda como um poema.
Estando a observar a holografia, dizia eu, entrou a Dra. Luninski no laboratório. Vinha a abanar a cabeça. Eu sabia que ela regressava de uma reunião com o Sr. Kornflock, onde o havia informado dos nossos progressos. Como vinha com cara de caso e como eu sabia quão imprevisível o homem era, perguntei:
“O comandante não está satisfeito?”
“Está... Eu é que tenho dificuldades no meio disto tudo.”
Oh diabo, pensei. Pelos vistos, a consciência começava a pesar-lhe. Normalmente, quando nós cientistas não conseguimos pôr a razão à frente da emoção, ficamos deprimidos, o que nos impede de trabalhar. No ponto em que se encontrava o nosso projecto, isso seria catastrófico, por isso retorqui:
“Descontraia-se! Neste bunker ninguém quer ouvir falar de ética e...”
“Não é isso.” Sentou-se a meu lado, em frente à imagem. “Esta gente não pode ser nazi.”
“Ora essa!”
“Pertencem a grupos étnicos diferentes, enquanto o Hitler pregava a supremacia da raça ariana. Não é preciso ter ganho o prémio Nobel para perceber que não dá a bota com a perdigota.”
Ergui os ombros e retorqui:
“A verdade é que a ideologia hitleriana arranjou adeptos no mundo inteiro, logo a seguir à morte do sujeito. Até nos países que sofreram os horrores do nazismo.”
“Mas isso não faz sentido.”
“O que prova que só gente psicologicamente afectada, ou numa extravagância da juventude, se pode entusiasmar por uma aberração dessas.” Baixei a voz: “Estes nossos compinchas são já bem crescidotes, por isso, nunca se esqueça que todos eles, por mais simpáticos que alguns nos pareçam, devem padecer de um bloqueio psicológico qualquer, que os impede de distinguir o absurdo do razoável. Tenha muito cuidado com tudo aquilo que diz!”

18 de setembro de 2010

Intermezzo # 7



"E, confortavelmente enroscada no macio da cadeira, achava-se aí, nesse momento, a famosa cadelinha escocesa, que tantas vezes passara nos sonhos de Carlos, trotando ligeiramente atrás de uma radiante figura pelo Aterro fora, ou aninhada e adormecida num doce regaço...

- Bonjour, mademoiselle - disse-lhe ele, baixinho, querendo captar-lhe as simpatias.

A cadelinha erguera-se logo bruscamente na cadeira, de orelhas fitas, dardejando para aquele estranho, por entre as repas esguedelhadas, dois belos olhos de azeviche, desconfiados, de uma penetração quase humana."

Os Maias, Eça de Queiroz

15 de setembro de 2010

19º Episódio

O que a Dra. Luninski me murmurou ao ouvido, logo varreu qualquer fantasia erótica da minha cabeça:
“Sou de origem judaica.”
“Ai, valha-nos o mais sensível dos microscópios!”
“O meu avô levava a sua religião muito a sério e fez questão de pôr todos os seus netos a par do holocausto. Acontece que ele morreu quando eu tinha apenas oito anos e eu nunca mais tinha pensado nisso. Por isso me custou lembrar-me de toda a história.”
“Não torne a referir tal coisa, nem sequer em sonhos! Sabe-se lá do que estes meliantes seriam capazes, caso se apercebessem disso?”
Depois de um curto silêncio, ela afirmou:
“Para lhe ser sincera, estou a ficar ansiosa para começar a trabalhar. O projecto em si é interessante.”
O perfume que lhe vinha do decote tornou a desnortear-me. O que era esquisito, pois normalmente não gosto de aromas doces. Para me desviar do percalço, olhei para o relógio:
“Devíamos dormir um pouco, antes de começarmos, a noite já vai adiantada... Se bem que aqui tanto faz dormir de dia como de noite.”
“Onde é o meu quarto? Aquela jarra russa disse...”
“Aquela jarra chama-se Olga!”
“Oh!” Olhou-me cínica. “Vocês os dois já são íntimos…”
Corei inexplicavelmente.
“Qual quê? Eu só acho que cada pessoa, seja ela maluca, ou mesmo criminosa, tem um nome que se deveria usar. E ela disse que era a primeira porta à direita. Vamos ver!”
Depois de um primeiro exame, a Dra. Luninski disse:
“Parece confortável.”
“A comida também é boa. Uma vez mergulhada no trabalho, a gente até se esquece que é prisioneira e tem que ajudar um bando de fanáticos a dominar o mundo.”
Ela sorriu.
“Uma coisa é certa: uma noite excitante como esta nunca eu a teria na discoteca, por mais picantes que os sujeitos fossem.”
Deveria sentir-me lisonjeado? Apenas lhe desejei:
“Durma bem!”
Quando caí na minha cama, notei quão cansado estava e dormi como uma pedra. Acordei perfeitamente revigorado, tomei um bom banho, barbeei-me e fiz o maior esforço por me pentear em condições.
Podia finalmente dar início ao famoso projecto! Estava ansioso por tornar a ver a... por trabalhar com a Dra. Luninski.

12 de setembro de 2010

18º Episódio

Ela olhou-me indignada, mas eu não evitei mais uma observação irónica:
“Além disso, não se preocupe. O membro em questão não ficará apto tão cedo.”
“Que piada! Pois digo-lhe já: foi a última vez que o senhor duvidou da minha capacidade profissional!” Levantou-se e acrescentou, de mãos na cinta: “Eu, meu caro Professor, sou a melhor coisa que lhe podia ter acontecido!”
Ao vê-la assim, de pé, perante mim, com os calções minúsculos, os collants de estrelinhas reluzentes e aquelas botas incríveis, confesso que me vieram os suores. Até gaguejei:
“A... a... acha?”
“Nem tenha dúvida! Vamos então fazê-lo?”
“Fa... fazê-lo? O quê?”
Rolando com os olhos, ela tornou a sentar-se.
“A clonagem, Professor.”
“Ah, sim... pois.” Aclarei a garganta. “Não temos escolha. Eu já fui ameaçado com câmara de gás e crematório.”
“Mas que criminosos sem imaginação nenhuma!”
“Trata-se de gente muito limitada, como era aliás de esperar. Alguns deles são mesmo… Como direi? Obtusos…”
“Caso consigamos dar vida ao psicopata, ele será tal como era e lembrar-se-á de tudo o que fez?”
“Quem sabe? Produziremos com certeza um adulto que terá o aspecto do Hitler. Mas, no que diz respeito ao seu estado psicológico, não estou em condições de fazer qualquer tipo de prognóstico. Os animais que eu e a minha equipa temos vindo a clonar são seres saudáveis, mas nunca nos disseram o que lhes passa pela cabeça.”
“E o projecto pode falhar.”
“Naturalmente. Mas, nesse caso, estes fanáticos vingar-se-iam. De nós, não sobraria nem um... oh, esqueça!”
“Tenho que lhe confessar algo, Professor.”
“Confessar?”
A Dra. Luninski colocou a sua cadeira ao lado da minha e inclinou-se na minha direcção. O meu olhar fixou-se compulsivamente no seu decote. Coisa que, e para utilizar a minha própria piada, me pôs instantaneamente apto!
Aquilo constrangeu-me. E muito me pasmou! Não costumo atingir um estado desses assim, como se me tivessem carregado num botão. Pertenço mais ao tipo de homem que precisa do ambiente propício. Além disso, sentia-me fraco. Só me ocorreu uma explicação: o maldito daquele cativeiro! Afinal, há duas semanas que eu nem sequer convivia com gente normal.

8 de setembro de 2010

17º Episódio

“Ainda estava a recuperar da travagem brusca, que me atirou com o ruge de encontro ao pára-brisas, quando aquelas três figuras esquisitas, armadas até aos dentes, se aproximaram de mim. O meu primeiro pensamento foi que se tratava de um programa do tipo dos apanhados!”
“Olha, dessa não me tinha lembrado eu, só do James Bond…”
“Como?”
“Esqueça… Agora está aqui… E não lhe resta mais nada, minha cara, senão ajudar-me a concretizar o projecto.”
“De que se trata, afinal? Que terroristas são estes? Usam roupas tão esquisitas!”
“Não são bem terroristas... É mais assim uma coisa... Meu Deus, nem sei por onde hei-de começar.”
“Comece por qualquer lado, Professor. A mim, tanto me faz.”
Respirei fundo.
“Já ouviu falar de Adolf Hitler?”
Depois de uma curta reflexão, ela retorquiu:
“Já… Mas, assim de repente, não lhe sei dizer em que contexto.”
“A expressão 2ª Guerra Mundial diz-lhe alguma coisa?”
Rolou os olhos:
“Nunca fui boa a História, Professor.”
“Nazis? Holocausto?”
“Holocausto? Espere lá! O senhor por acaso está a falar de um ditador do século XX, obcecado com a ideia de matar todos os judeus?”
“Sem tirar nem pôr.”
Uma ponta de medo ensombrou por momentos os olhos castanhos, mas ela manteve-se calada. Acrescentei baixo:
“Estes malucos querem que eu clone o Hitler.”
“O quê?”
“Está a ver aquele carvãozinho?”
Contei-lhe a história do Sr. Obskur. Quando acabei, ela ia a falar, mas interrompeu-se. Reflectiu durante mais uns instantes e perguntou depois:
“Já examinou o carvão?”
“Já.”
“E então?”
“Tem origem orgânica... e é um pedaço do Hitler, não há a menor dúvida.”
“Como pode ter tanta certeza?”
“Só ele e a sua companheira foram queimados naquele sítio... E como se trata de células genitais masculinas…“
“Ai credo, que horror! Não me obrigue a trabalhar com aquilo que já fez parte do pénis do Hitler!”
Abanei a cabeça, dando estalinhos com a língua.
“Ora Dra. Luninski, esperava mais profissionalismo numa boa engenheira química.”

5 de setembro de 2010

16º Episódio

A Dra. Luninski bebeu mais um pouco de água e prosseguiu:
“Assim se foram passando três anos. O Karl visitava-me regularmente e de todas as vezes prometia-me que a próxima seria a sua última viagem. No entanto, encontrava sempre um motivo para adiar a decisão definitiva. Ou era porque no momento recebia, por toda a Europa, propostas irrecusáveis de trabalho e andava sempre de um lado para o outro, ou porque alguma revista de moda alemã lhe oferecia muito dinheiro para fotografar certas modelos... eu sei lá. No início, acreditava nele, depois comecei a ficar desconfiada. Entretanto, acabara o meu curso, mas só encontrava empregos temporários e comecei a ter vontade de tentar a minha sorte na Alemanha.”
A Dra. Luninski suspirou, bebeu um grande gole de água e acrescentou:
“Há dois anos, porém, arranjei o emprego com que sonhava: um lugar definitivo no famoso laboratório do Professor Saturnino. O Karl também se regozijou e disse-me que estava prestes a vir para cá.”
Ela embatocou e eu opinei:
“Presumo que ainda não veio.”
“Nem virá, esse canalha!”
Em vez de dar continuidade à história, começou a chorar. Dei-lhe um lenço e esperei até que ela, entre soluços, prosseguisse:
“O tempo foi-se passando e ele, como sempre, não atava nem desatava. Até que me vi tão furiosa e desesperada, que há um mês me demiti!”
“O quê? Desistiu do emprego com que sonhara?”
“Desisti. Tinha a certeza de que o Karl me escondia algo e resolvi aparecer de surpresa na Alemanha, de armas e bagagens. Mas, quando ele me telefonou há dez dias, não me aguentei e contei-lhe tudo. Disse-lhe que lhe surgiria em casa... e que tencionava lá ficar para sempre.”
A Dra. Luninski havia controlado o choro. Atirou com o lenço para cima da mesa e prosseguiu furiosa:
“O Karl perdeu as estribeiras! Como é que eu me atrevia a demitir-me sem lhe ter dito nada? Então ele não tinha dito que queria vir para a América? Fartámo-nos de discutir ao telefone. Mas eu não cedi e continuei a preparar a minha viagem.” Respirou fundo. “O Karl telefonou-me há três dias para me dizer que tinha casado há um ano com uma das suas modelos!”
“Mas que canalha!”
“Foi o que eu disse.”
“Sinto muito... sinceramente.”
Ela recomeçou a chorar:
“O amor da minha vida gozou anos a fio com as suas modelos, enquanto eu só pensava nele. E, por ele, tinha eu dado cabo do meu futuro como cientista e investigadora num dos laboratórios de mais prestígio do país. Só queria morrer.”
“Compreendo. Mas sabe o que eu penso? Que tudo não passava de um momento de desespero. Você jamais se suicidaria!”
“Como pode dizer isso, Professor? Mal me conhece.”
“Olhe por si abaixo! Em vésperas de pôr fim à própria vida, você prepara-se para ir para a discoteca... de que maneira!”
Ela ergueu os ombros indiferente:
“Isto foi a Anita.”
“A Anita?”
“Sim, a minha amiga, que me queria animar. Disse-me que os homens que frequentavam esta discoteca eram mais picantes que piripiri. E eu pensei: porque não passar uma boa noite de sexo, antes de me mandar desta para melhor?”
“Realmente, não é mal pensado...”
“Entrei no carro e accionei logo o piloto automático, de maneira a que pudesse acabar de me pintar. Ao fim e ao cabo, eu raramente guio.”
“Tal e qual como eu.”
“Mas desta vez foi um erro.”
“Como assim?”
“Facilitei a vida aos raptores. Além do carro ir a uma velocidade lenta, parou, assim que o radar deu conta de um obstáculo. Os três tinham-me ultrapassado, apenas para parar à minha frente, sem mais nem menos, no meio da estrada. Se fosse eu a guiar, era bem capaz de me ter conseguido desviar.”
“Sim, talvez.”

4 de setembro de 2010

Intermezzo # 6




"Se me vejo forçado a ir-me do seu lado
não paro de olhar para trás e caminho como uma besta ferida.
Mas ainda que o meu corpo se distancie, os meus olhos ficam fixos nela
como os do náufrago que das ondas contempla a margem."


"Nada me perturbou mais que um pombo que num ramo
arrulhava entre a ilha e o rio.

(...)

Mas ao ver as minhas lágrimas, assustou-o o meu pranto
e erguendo-se sobre o verde ramo

abriu as asas e bateu-as no seu voo
levando consigo o meu coração. Aonde é que não sei."


Textos de Ibn Hazm e Ibn Hisn, poetas mouros do século XI

Acho que me inspirei em vésperas de partida para o Alentejo. Os Episódios da "saga" vão continuar a sair regularmente, já descobri como se programam mensagens (estou a ficar cada vez mais esperta).

1 de setembro de 2010

15º Episódio

Fixei a Dra. Luninski estupefacto. Era bem capaz de ter razão. Apesar de ser de um tipo diferente, compreendia com certeza melhor do que eu os sentimentos das outras mulheres. Assomou-se-me mais simpática e retorqui:
“Obrigada. Há muito tempo que ninguém me conseguia animar assim.”
Ela sorriu, mas eu tive a impressão de ver uma certa tristeza nos seus olhos... Apesar das toneladas de maquilhagem. Como se adivinhasse os meus pensamentos (salvo erro, pela segunda vez), ela começou a livrar-se das longas pestanas e eu gracejei:
“Postiças, claro!”
Tornou a sorrir:
“O senhor aprende depressa, Professor!”
Na verdade, as suas verdadeiras pestanas mal se viam, o que aliás deixava sobressair a beleza dos expressivos olhos castanhos.
“Você veste-se e pinta-se sempre dessa maneira nos seus tempos livres?”
“Bem, na verdade eu ia a caminho da discoteca... Quando esses doidos me raptaram.”
Lá vinha aquela tristeza, o que me fez sentir culpado. Balbuciei:
“Como lhe hei-de explicar... No fundo, fui eu o responsável...”
“Não se incomode Professor! Que mais faz?” Os olhos humedeceram-se-lhe. “Afinal, planeava suicidar-me!”
“O quê?!”
“Por causa do Karl.”
“Do Karl?”
“Sim, o meu ex-namorado alemão.”
Habituara-me tanto a falar e a ouvir falar alemão, que só agora achava curioso que aquela minha compatriota também o soubesse tão bem.
“Foi por causa dele que aprendeu alemão?”
“Não propriamente. Conheci-o já na Alemanha, onde estive dois anos, na sequência de um programa de permuta de estudantes entre universidades de vários países. Assim que lhe pus os olhos em cima, soube logo que ele era o amor da minha vida.” (tal e qual como eu e a Amanda). “Mudei-me para o apartamento dele e vivemos como num sonho. Mas chegou o dia em que tive que regressar à América.” Ela olhou para a mesa onde jazia ainda o meu jantar e perguntou: “Posso beber um pouco de água? Estou cheia de sede.”
“Sim, claro.” Enchi-lhe um copo e dei-lho. “Quer comer alguma coisa? O guisado está frio, mas também há pão, manteiga e...”
“Não obrigada. Onde ia eu?”
“Tinha acabado de regressar ao nosso país.”
“O Karl veio-me visitar passado meio ano. Eu encarava a possibilidade de me mudar para a Alemanha e acabar lá o curso, mas ele disse-me que ponderava vir viver para a América, onde havia também boas possibilidades de exercitar a sua profissão de fotógrafo freelancer. Pediu-me que esperasse mais algum tempo.”