Janela Indiscreta

Blogue recomendado por Pedro Rolo Duarte no seu programa Janela Indiscreta, da Antena 1, a 28-07-2010.

15 de agosto de 2010

10º Episódio

Surgiu-me uma mulher pequena, magra e pálida. Era-me impossível calcular-lhe a idade, qualquer coisa entre os trinta e os quarenta. Trazia os cabelos escuros bem apanhados e usava óculos quadrados, de armação grossa, castanha. Os seus olhos eram impenetráveis. Possuía, no fundo, um ar muito profissional, o de uma assistente de laboratório perfeita: esperta, competente e sem grandes encantos femininos. Talvez lhe pudesse realmente ensinar muita coisa.
“Presumo que seja a Sra. Matrix Relot!”
“Exactamente.”
Estremeci. A senhora não falava, piava:
“Mas deixe-me chamar-lhe a atenção para o facto de que estou com falta de prática. Não exerço a minha actividade profissional desde que me juntei a esta comunidade, há cinco anos. Como todos os outros, investi o meu tempo e todo o meu dinheiro na construção deste bunker e na montagem do seu laboratório.”
Fiquei curioso. Afinal, que motivos teria aquela mulher para se juntar a nazis? Aclarei baixo a garganta e perguntei:
“Porquê?”
“Porquê o quê?”
Os olhos da Sra. Relot estavam agora muito abertos, por detrás dos óculos.
“Porque o fez? Por acaso gosta da vida que aqui leva, isolada do mundo?”
A Sra. Relot fixou-me em silêncio durante vários segundos (já devia ter aprendido com os alemães) e eu tive a impressão que o seu olhar perdia um pouco da sua opacidade, para deixar transparecer indignação e fúria. Meu Deus, pensei, que fiz eu? Será que ela se vai queixar ao comandante?
“Não gosto de estrangeiros”, disse ela de repente.
“Como?”
“A França tornou-se num país de imigrantes, que nos tiram o trabalho e destroem os nossos costumes e tradições. Participei durante anos em comícios e demonstrações da extrema-direita, mas de nada adiantou. No entanto, sob as ordens do nosso Führer dominaremos o mundo!”
“Sra. Relot! Permita-me lembrar-lhe a coragem de certos franceses do século XX, que arriscaram as próprias vidas, e muitos perderam-na, a fim de expulsar os nazis da sua terra! Nunca ouviu falar da Résistence?”
Ela olhava-me como se eu tivesse falado chinês. Mas eu já não me segurava:
“Que significa isso de não gostar de estrangeiros? Todos nós o somos, em determinadas circunstâncias. Você própria, minha senhora, é uma estrangeira aqui no meu país. E o que são os seus compinchas nazis? Nazis dos quatro cantos do mundo? Um bando de estrangeiros! Quando dominarem o planeta, que costumes e tradições adoptarão? Franceses? Americanos? Alemães?”
Dei-me conta que a minha voz tinha aumentado de tom, as últimas palavras haviam sido quase gritadas. Mais alguém me teria ouvido? Receoso, pus-me à escuta de passos... mas nada aconteceu. Só a Sra. Relot me continuava a fixar como se eu fosse uma criatura exótica. Perguntei-lhe:
“Entendeu-me, minha senhora?”
“Claro, não sou surda.”
“E então?”
“E então, o quê?”
“Não tem nada para me dizer?”
“Absolutamente nada.” Acrescentou presunçosa: “Eu não me deixo levar em cantigas. Todos nós idolatramos o Führer e, sob o seu comando, dominaremos o mundo. Mas só se o senhor, meu caro Professor, fizer o seu trabalho e acabar com os seus discursos demagógicos!” Olhou-me desconfiada: “O senhor é comunista?”
Mudei de ideias: a Sra. Relot parecia-me ser tudo, menos inteligente. Nada mais me restava do que meter mãos à obra. Afinal, ainda havia muito que ensinar à minha adorável assistente.

7 comentários:

antonio ganhão disse...

Eu sei que estamos no domínio da ficção, onde até as mulheres são inteligentes, mas convém manter um certo realismo... Hoje no mundo ainda existe uma escassa minoria de seres exóticos preocupados com essas demagogias. Felizmente Portugal já tem o seu fuhrer e um clone na oposição para o suceder caso algo corra mal.

antonio ganhão disse...

Eu sei que estamos no domínio da ficção, onde até as mulheres são inteligentes, mas convém manter um certo realismo... Hoje no mundo ainda existe uma escassa minoria de seres exóticos preocupados com essas demagogias. Felizmente Portugal já tem o seu fuhrer e um clone na oposição para o suceder caso algo corra mal.

Daniel Santos disse...

raptado, encarcerado,obrigado a trabalhar num projecto arrojado e filosofo.

As personagens surgem, a trama adensa-se... gostei.

Rafeiro Perfumado disse...

Ná, a francesa deveria ser uma boazona, para podermos sonhar com cenas de sexo em cima da bancada...

Marreta disse...

Acho que a essa Matrix Relot faria bem um jantar com o Cebolo.

Saudações do Marreta.

José Lopes disse...

Os críticos são sempre apelidados de comunistas... afinal até na ficção as coisas se repetem.
Cumps

Zé Povinho disse...

Não gosto de estrangeiros. O Sarkozy também não gosta de ciganos, mas diz que não é racista. Enfim, memórias curtas.
Abraço do Zé