Janela Indiscreta

Blogue recomendado por Pedro Rolo Duarte no seu programa Janela Indiscreta, da Antena 1, a 28-07-2010.

8 de agosto de 2010

8º Episódio

Não passei nenhum fim-de-semana na minha casa do lago com o Maddox e a Dahlia. Nem fazia ideia quando tornaria a ver os meus filhos (se é que os tornaria a ver). Havia uma semana que me encontrava naquele maldito bunker. Não se tratava de um pesadelo, mas de pura realidade.
Mergulhei no trabalho, para não enlouquecer. A Sra. Tortinova, ou Olga, como ela insistia em que eu a tratasse, tivera razão: qualquer cientista desejaria tal oportunidade de testar, sem limites, os seus conhecimentos e aptidões. É um desejo que se recalca, na vida normal. E não só por, neste caso, ser proibido clonar seres humanos. Também a minha consciência sempre me dissera que não me metesse numa aventura dessas. Agora, ou o fazia, ou, para citar o Sr. Kornflock, “de mim não restaria nem um...” Bem, não me quero tornar repetitivo.
Por outro lado, caso fosse bem sucedido, proporcionaria uma segunda vida a um psicopata que, há quase 200 anos, originara uma guerra mundial. Como se isso não bastasse, o energúmeno ordenara, por decreto, a exterminação pura e simples de grupos étnico-religiosos. E era com esse monstro que os doidos daqueles nazis se propunham dominar o mundo!
Uma ideia que nem sequer era original. Será que me tinham escolhido para um filme que contava essa história pela milionésima vez, sem me informarem, a fim de que a minha actuação fosse autêntica? Não seria o primeiro a cair numa armadilha dessas, os estúdios cinematográficos inventam estratagemas cada vez mais absurdos. E o certo é que, no fim, esses actores involuntários acabam por autorizar a publicação das filmagens, apesar de a maioria ter feito figura de parva, tão grande é a sede de sucesso e de fama. Dei comigo a perguntar-me quando surgiria o super-herói, ou o agente secreto, que me libertaria, evitando a catástrofe mundial.
Por falar em agentes secretos: ao ver os filmes antigos do meu colega de liceu, constatei que o 007 surgiu há 150 anos! Era no fundo de calcular, pois Hollywood prepara-se para comemorar a estreia do 100° filme. O que eu aliás achei deveras interessante, foi que o James Bond dos primeiros sessenta anos era heterossexual! Em vez de Bond-boys, havia Bond-girls! (Talvez não fosse má ideia ter vivido em fins do século XX)...
Qual super-herói, qual agente secreto, qual carapuça? Eu não passava de um vilão, que contribuiria para a destruição do planeta. Convenhamos que eu tinha o poder de acabar com aquele projecto a qualquer momento. O que aliás não me traria qualquer vantagem, pois, como o Sr. Kornflock tinha dito, “de mim não restaria nem...” Lá vou eu outra vez!
Uma coisa eu podia fazer: adiar a concretização da experiência. Comecei por informar o comandante e os seus compinchas que precisava de um certo tempo para me habituar a trabalhar num laboratório situado a dezenas de metros de profundidade, apetrechado com aparelhos que, apesar de serem de boa qualidade, me eram estranhos. Afinal, eu era um génio e toda a gente sabe como os génios são sensíveis. Uns dias mais tarde, comuniquei que o carvãozinho não era nada fácil de examinar.
Na verdade, eu já sabia, naquela altura, tudo sobre ele. Simples, não tinha sido, a maior parte consistia realmente em matéria inútil, de que eu tive que me livrar com o maior dos cuidados. No fim, restou apenas um pedacinho minúsculo... que possuía informações genéticas e que, muito provavelmente, pertencera a Adolfo Hitler. Como disse, não revelei esta informação, apesar de notar que aqueles doidos começavam a ficar impacientes. E, quanto mais impacientes, mais perigosos, em breve teria que abrir o jogo.
Mas isso ainda não era tudo. Uma nova constatação começou a torturar-me: sozinho, não conseguiria levar o projecto avante!
Não que me envergonhasse de precisar de ajuda. Afinal, a minha equipa em Los Angeles consistia em mais três cientistas. O problema era que, na minha situação, aquilo significava que pelo menos mais uma pessoa teria que se raptada. À minha responsabilidade, mais alguém seria arrancado da sua vida normal, para ser enfiado naquele bunker, a fim de sujar as suas mãos num projecto abominável.
Esta constatação incomodou-me tanto, que fiquei mesmo deprimido e já não trabalhava há dois dias. Porém, o Sr. Kornflock tinha mandado anunciar que me visitaria naquela tarde, a fim de ficar a saber se e como o projecto seria finalmente retomado.
Deveria mentir-lhe, dizendo que o carvãozinho era inútil? Ele não hesitaria em mandar-me para uma das câmaras de gás, cremando em seguida o meu cadáver, não sobrando “nem um...” exactamente! E, com isso, eu nem conseguiria salvar o mundo. Era eu ainda o único capaz de concretizar o projecto, mas, passados poucos anos, estou certo de que surgiriam outros cientistas com essa capacidade. Os nazis esperariam o tempo que fosse preciso, persistência não lhes faltava. Conclusão: com uma mentira dessas, a única coisa que eu conseguiria, seria uma morte de consciência limpa.
O que, admito, não é de subestimar. Mas eu não sou nenhum santo. Quero continuar a viver, tornar a ver os meus filhos, a esperança é a última a morrer, etc., etc. O que faria qualquer outro no meu lugar?

2 comentários:

Rafeiro Perfumado disse...

Típico raciocínio de cobardolas. Se ele fosse um verdadeiro herói já tinha papado o que restava do carvão!

Daniel Santos disse...

o que fazer? Gostei.

Continuo a seguir com interesse a historia.