“Mas que é isso, Sr. Cebolo? A vida continua!”
“Para nós, não.”
“Ora essa!”
“Não adianta viver sem o Führer. Esperámos por ele tanto tempo e agora ele desapareceu para sempre. Para nós, não faz sentido continuar a viver.”
Eu e a Chanel trocámos um olhar apreensivo. Será que o resto dos nazis tencionava eliminar-nos a todos, fazendo explodir o bunker, ou coisa parecida? Pois eu não deixaria acontecer uma coisa dessas sem oferecer resistência:
“Compreendo que estejam desiludidos. Mas acontece que a Dra. Luninski e eu conseguimos imaginar uma vida fora deste bunker. Afinal, eu tenho dois filhos.”
“Eu sei, Professor.”
“Tenho muitas saudades deles e anseio vê-los. O senhor consegue compreender isso?”
Ele olhou-me espantado:
“Mas claro que sim! Por isso mesmo resolvemos não ficar zangados se os senhores não se juntarem a nós, agora que decidimos seguir o exemplo do nosso Führer.”
“Que quer dizer com isso?”
“Acabaremos com as nossas vidas. Mas os senhores são livres de escolher o vosso próprio caminho.”
A Chanel e eu olhámo-nos aliviados, mas também emocionados. Entre mim e o Sr. Cebolo tinha havido bons momentos, em que a simpatia era mútua, e eu sentia-me na obrigação de fazer alguma coisa por ele:
“O senhor tem a certeza que não há nada que o faça mudar de ideias?”
“Neste mundo, tal e qual como é, não quero viver.”
“Mas porquê?”
“Ai, Professor, é tanta confusão, tanto stress!” O homem estava mesmo angustiado. “Se uma pessoa não se adapta à barafunda, ou sobrevive à base de drogas, ou se torna num marginal. Mas, mesmo em caso de adaptação, cada um de nós mais não é do que um grão de areia no deserto.”
“Ora”, retorqui, “o mais importante é descobrir algo que nos dê prazer e alegria. Até os mais excêntricos têm possibilidades de serem felizes, encontra-se sempre gente que partilha os mesmos interesses, que possui as mesmas preferências...”
O Sr. Cebolo abanou a cabeça e replicou:
“Entre os nazis, tudo tinha a sua ordem, cada um de nós sabia exactamente o que fazer, tinha a sua função. Era isso que eu admirava nesta comunidade, Professor, havia um objectivo a alcançar, algo por que lutar. Não precisávamos de nos martirizar todas as manhãs com a pergunta: mas como é que hei-de passar mais este dia? Ninguém andava perdido, sem orientação. O Führer ordenava e a gente cumpria. Reinava a disciplina!” Acrescentou desesperado: “Eu não sei viver sem essa disciplina, sem essa orientação, sinto-me tão perdido!”
O pobre do homem precisava de ajuda psicológica, precisava de quem lhe mostrasse que não é preciso eliminar outros seres humanos, nem tão pouco prejudicá-los, para encontrar a própria felicidade. Mas eu não sou nenhum psiquiatra, a única coisa que me ocorreu, foi:
“Tenho a certeza que também o senhor conseguiria encontrar o seu lugar fora deste bunker. Só precisa de entrar em contacto com as pessoas certas. Se nos quiser acompanhar, a Chanel e eu faríamos os possíveis por...”
Tornou a abanar a cabeça:
“Não adianta, Professor, eu seria sempre um zero, uma formiguinha minúscula no meio da floresta. Como poderia eu aguentar uma coisa dessas, ainda por cima agora, depois de saber o que é bom, depois de ter conhecido a glória?”
A Chanel e eu ficámos sem compreender bem onde ele queria chegar, mas o homem acabou por acrescentar:
“Não era eu o elemento mais importante desta comunidade, logo a seguir ao Führer? Tivéssemos nós chegado a dominar o mundo, eu seria o segundo homem mais poderoso do planeta! Os senhores fazem ideia do que isso significa para um português?” Os olhos brilharam-lhe. “Os meus compatriotas é que ficariam espantados, haviam de se orgulhar de mim! E eu nem sou jogador de futebol!”
Não adiantava. Tínhamos que deixar o Sr. Cebolo entregue ao seu destino.
8 comentários:
O Cebolo fez-me ver por momentos a semelhança que existe entre ele e um Pinóquio da nossa praça. O poder cega os que dele são sedentos e não há outra realidade para esses, a não ser a sua.. fantasia.
Cumps
Curioso como todo o fanatismo se alicerça em causas perdidas. E eu sempre achei que o futebol nos desgraça...
Estaremos condenados ao realismo?
e será que num século tão evoluído como aquele ainda haverá algo tão primitivo como o futebol?
Quem sabe...
Tenho pena do senhor Cebolo, afinal a vida para ele deixou de fazer sentido. É triste.
O sentido da vida dele não prestava, mas é triste na mesma.
O sr Cebolo ignora que não há destinos
Sim, é fatalista. Se tivesse tido essa ideia antes, ainda o punha a cantar o fado... ;)
Sim, nos tempos que correm, será difícil projectar um português fora do relvado, é tudo futebol e futebol é indisciplina!
Gosto da disciplina! Serei nazi?!
Um abraço ao sabor da história
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