Todo o anfiteatro rebentou em tal orgia de sieg heils, que me começaram a doer os ouvidos. Nunca tinha visto tantos fanáticos juntos e, mais do que nunca, senti a falta do recolhimento e da solidão do meu amado laboratório.
Possuía, porém, ainda alguns trunfos. Assim que a multidão se acalmou, perguntei:
“Vossas senhorias já pensaram na possibilidade de esse pedaço de carvão nem sequer ter pertencido a Hitler? O corpo da companheira não foi cremado junto com o dele? E quem nos diz que isso terá origem orgânica? Quem sabe, não se trata de uma qualquer pedrita? Ou de um botão do sobretudo do Führer? Ou até de...”
“Tenho a certeza”, interrompeu-me o Sr. Kornflock (sorria, mas o seu tom era indubitavelmente ameaçador), “que o senhor estará em condições de esclarecer essa questão em pouco tempo.”
“Sim, claro”, respondi e atrevi-me a questionar: “Se o... carvãozinho não tiver utilidade para o nosso projecto, eu... poderei ir à minha vida?”
“Ir à sua vida?!”
O comandante desatou às gargalhadas. Logo todo o anfiteatro escancarou as goelas e eu resisti à tentação de tapar os ouvidos, não queria enfurecer ainda mais aquela gente.
O Sr. Kornflock acabou de rir de repente, como se alguém tivesse carregado numa tecla que lhe desligasse tal função, e, a um sinal seu, todos os outros fizeram o mesmo. Depois, dirigiu-se-me cheio de ironia:
“No seu lugar, eu rezaria para que o carvãozinho seja aquilo que esperamos, Professor Solani, e que esteja em condições de ser trabalhado.”
Quase fiz nas calças, mas retorqui-lhe o sorriso com as palavras:
“Acha então que eu não devia recusar este projecto?”
“Aconselho-o a que não o faça. Sabe, é que nós estamos bem apetrechados. Temos, neste bunker, uma câmara de gás e um crematório.” Controlou o riso, para poder acabar: “De si, meu caro Professor, nem um carvãozinho sobrava!”
Todos gargalharam de novo, fazendo vibrar as paredes de pedra. Na minha náusea, dei-me conta de quão fraco estava. A noite já tinha com certeza passado, o que queria dizer que eu já não dormia há 24 horas e há pelo menos sete que não comia. Referi isso, afinal eles precisavam de mim em bom estado.
O Sr. Kornflock tornou-se automaticamente amável, como se fôssemos grandes amigos e tivéssemos passado a noite em amena cavaqueira:
“Junto com os senhores Mao Tsé Tinho e José Cebolo, a Sra. Olga Tortinova irá levá-lo aos seus aposentos, ao lado do laboratório, e tratará do seu pequeno-almoço.”
Eram estes os meus três raptores: a Olga Tortinova era a voz de vodka, naturalmente de origem russa; o Mao Tsé Tinho era a tal bola chinesa e o José Cebolo devia ser português, a julgar pelo nome e pelo bigode farfalhudo. Além disso, era o único habitante daquele bunker que apresentava umas faces bem coradinhas.
Eu perguntava-me se o laboratório deles estaria apetrechado em condições. Mas de nada me adiantaria esperar o contrário. Não tinha a mínima possibilidade de recusar a tarefa. Se me tornasse inútil para aqueles fanáticos, e citando o Sr. Kornflock: “de mim não sobraria nem um carvãozinho”.
9 comentários:
"Nunca tinha visto tantos fanáticos juntos..." vejo que o cientista nunca assistiu a um jogo do FCP.
A convicção dos "fanáticos" e a sua confiança num projecto megalómano e esta frase: "...nós estamos bem apetrechados. Temos, neste bunker, uma câmara de gás e um crematório." Faz-me desconfiar que estamos a retratar a actualidade política portuguesa.
Mas gostei. Encerrados os preliminares, eis que a acção começa no espaço limitado de um bunker (até Paul Auster desistiu do seu projecto, quando na noite do oráculo fez algo semelhante a um dos seus personagens) A prova de força começa agora, o suspense adensa-se.
Quanto ao jogo do FCP: lololol :D
Quanto à actualidade política portuguesa: estás mesmo pessimista! Mas o que me assusta é que és capaz de ter razão...
E quanto ao suspense, espero que se mantenha!
Agradecida pela visita e um abraço, caro implume.
"Quase fiz nas calças". Líquido ou consistente? ;)
Lol!
Bem... fica ao teu critério (deve ser a isto que se chama ler nas entrelinhas).
gostei... tenho apenas algumas duvidas sobre o português coradinho. Daqui a dois séculos, seguindo o caminho que temos hoje, coitados de nós, dificilmente teremos dinheiro para andar coradinhos.
Tirando a brincadeira, gostei e aguardo o passo seguinte.
Ó Daniel, um "Zé Povinho" que se preze tem que ser coradinho ;)
Entretanto, o blog já fez da minha Lucy uma "superstar".
Vejam como ela ficou bonita em
http://nemsemprealapis.blogspot.com!
Daqui a dois séculos? Há nove que Portugal está em crise e ainda por cá se vai andando. Nem eu nem nenhum dos actuais, filhos, netos, estaremos cá, mas outros cristienes reinaldes hão-de aparecer. A Olga Tortinova é filha da Helga Direitivelha, não é?
Um futuro muito igual ao passado que muitos esqueceram.
Abraço do Zé
Não conheço a Helga Direitivelha, mas se achas que será a mãe da Olga, eu acredito ;)
Enviar um comentário