Fui raptado a 21 de Janeiro de 2112, o dia do meu 42° aniversário.
Admito que um cientista vencedor de um Prémio Nobel represente um alvo apetecível para terroristas ou caçadores de resgates. Mas nem nas minhas fantasias mais loucas eu me teria lembrado de tais raptores.
Chamo-me Jason Solani, sou americano, vivo e trabalho em Los Angeles e recebi o Nobel por ter criado uma incubadora que permite a clonagem de animais extintos, nela se desenvolvendo o novo ser em questão de semanas.
Era quase meia-noite e encontrava-me sozinho no laboratório, envolvido no meu trabalho. Nada de anormal, nem mesmo no dia do meu aniversário. Hábitos deste tipo deram cabo do meu casamento, ainda assim, a Amanda aguentou dez anos a meu lado.
Observava a holografia das células de uma espécie marinha descoberta há pouco tempo (uma estrutura fascinante!), quando ouvi a porta abrir-se atrás de mim. Pensei: deve ser o Fabrício. Esse meu colega é quase tão obcecado pelo trabalho quanto eu, surge-me muitas vezes no laboratório a meio da noite, a fim de me explanar uma ideia que teve ou de me informar sobre uma descoberta científica.
Preparava-me para me virar e perguntar: “Então, o que é desta vez?”, quando me enfiaram uma serapilheira na cabeça.
Foi isso mesmo: uma serapilheira! Que cheirava a salsichas tipo Frankfurt!
Quedei-me tão embasbacado, que os meus raptores não precisaram de esforço para me atarem as mãos atrás das costas. Só caí em mim, quando alguém me segredou algo através do saco. Hoje sei que se tratava de uma mulher, na altura cheguei a duvidar, ao ouvir aquela voz de quem esvazia uma garrafa de vodka ao pequeno-almoço:
“Seja cooperativo, Professor! Não me obrigue a usar de violência contra si!”
Arrastaram-me para fora do prédio e eu nem me lembrei de gritar por socorro, tão ocupado estava a perguntar-me porque cargas de água a criatura falara comigo em alemão! Por outro lado, o prédio estava vazio àquela hora, de nada me adiantaria berrar.
Bem, o meu faible por línguas é conhecido, falo fluentemente alemão e francês. Vejo-me assim mais bem preparado para assistir a conferências na Europa. Não me dou com traduções feitas por computador, por mais que as aperfeiçoem, estão longe de fazer jus aos extintos tradutores simultâneos. E aprendo línguas estrangeiras com tanta facilidade, que aulas desse tipo se me tornaram numa maneira de vencer o stress. Até sei um pouco de português, o que me dava imenso jeito, quando a Amanda e eu passávamos férias no Brasil... Bem, em dez anos, dispus-me duas vezes a tirar férias.
Assim que chegámos à rua, fui empurrado para dentro de um carro, que logo arrancou e me deu a impressão de ser um modelo flutuante perfeitamente normal. Agora, se ele flutuava a 20 ou a 30 cm do solo, ou se atingia uma velocidade máxima de 450 ou 500 km/h, não sei dizer. Não pertenço ao género de criaturas a quem o ronco do motor tudo revela sobre o bólide. Nem sequer gosto de conduzir, mal entro no meu carro, ligo logo o piloto automático. Quero lá saber que assim a velocidade não ultrapasse os 150 km/h! Aproveito para dar uma olhadela no meu trabalho... Escusado será dizer que o meu portátil está ligado a todos os computadores do laboratório, para que possa acompanhar as minhas experiências 24 horas por dia. Sim, também isso irritava a Amanda…
A propósito, o meu ex-cunhado sabe tudo sobre carros. Adora velocidades. Quando se me assomou difícil assinar os papéis do divórcio, só precisei de pensar nas viagens que fiz ao lado daquele maluco, que ignora que é possível andar a menos de 350 km/h…
Regressemos ao meu rapto: apesar de tapado pela serapilheira a cheirar a salsichas, tentei falar com os meus sequestradores, mas eles mantinham-se mudos. Nem sequer a voz de vodka, sentada a meu lado, se deixou enredar na minha conversa.
Perdi a noção do tempo e não faço ideia quanto demorou a viagem. Só sei que, a determinada altura, notei que tínhamos entrado a grande velocidade num túnel que parecia não ter fim. Confesso que cheguei a dar graças a Deus pela serapilheira enfiada na cabeça.
Quando o carro finalmente parou, arrancaram-me de lá e a voz de vodka guiou-me através do que me parecia ser um longo corredor. Atrás de nós vinham os outros dois raptores, as suas botas ecoavam no chão de pedra num ritmo perfeitamente sincronizado. Com os meus ténis, o meu andar era, como sempre, silencioso. Gosto de usar coisas práticas, por isso, também naquela noite estava vestido com uns jeans e uma t-shirt por baixo da bata branca.
Entrámos num compartimento que me parecia ser um grande salão e senti a presença de muita gente. Bem podiam ser mais de cem. Que estranho! Sempre pensara que raptores se limitassem a um pequeno grupo de terroristas, que fechassem a sua vítima numa cave apertada.
Estabeleceu-se silêncio à nossa chegada. Aquilo revolveu-me as entranhas, nem no carro do meu ex-cunhado eu experimentei tamanho pavor.
Sem qualquer pré-aviso, arrancaram-me a serapilheira da cabeça e eu vi...
Na verdade, não vi nada, os meus olhos precisaram de um certo tempo para se habituarem à iluminação. Passados esses primeiros instantes, constatei que me encontrava num salão abobadado, em frente de uma assistência sentada em anfiteatro, todos aqueles olhos postos em mim.
Odeio ser o motivo das atenções! Com excepção das minhas palestras na Universidade Científica de Los Angeles. Mas neste caso, em vez de estudantes e cientistas, via à minha frente homens e mulheres de fatos cinzentos e pretos, o que dava um aspecto fantasmagórico à palidez dos seus rostos. As paredes da sala eram brancas, o chão e o tecto de pedra cinzenta, as cadeiras pretas... Meu Deus, teria eu aterrado num mundo virtual a preto e branco?
Não! Cada uma daquelas criaturas usava uma braçadeira vermelha. No seu centro, uma cruz suástica preta, sobre fundo branco. Por acaso, eu conhecia aquele símbolo... de filmes antiquíssimos.
Tive um colega de liceu fascinado por aparelhos antigos de ecrã, como televisores e demais apetrechos, do tempo em que ainda não havia imagens flutuantes, ou holografias. Ele possuía ainda uma caixa extremamente primitiva: um leitor de DVDs, que, por mais incrível que pareça, ainda precisava de fios para funcionar!
Esse indivíduo era bem mais maluco do que eu. Via fascinado filmes gravados em discos grosseiros, os tais DVDs. Nunca me disse onde arranjava material tão arcaico. E eu nunca entendi o que é que ele tinha contra os normais pen-drives, onde cabem 40 a 50 filmes. Adiante! Como eu também sempre tive uma pancada, deixei-me convencer a ver aquelas relíquias, muitas delas tinham sido rodadas no século XX!
Não foi tempo perdido. Fiquei, por exemplo, a saber que tinha havido nazis. Muitas das películas eram sobre uma guerra mundial, acontecida há quase 200 anos, uma guerra despoletada por um psicopata alemão... ou austríaco, sei lá! O que eu nunca pensei foi ver, em pleno século XXII, nazis ao vivo! Quase nenhum dos meus amigos e conhecidos ouviu falar deles.